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NATUREZA JURÍDICA DAS CRIAÇÕES INTELECTUAIS, OBJETO DA PROTEÇÃO AUTORAL 

“Certos autores falando de seus trabalhos dizem: ‘Meu livro, meu comentário, minha história’; […] Seria melhor que dissessem: ‘Nosso livro, nosso comentário, nossa história, etc…’ visto como em suas obras há mais bem alheio do que próprio.”

Blaise Pascal

INTRODUÇÃO 

O direito de autor é, sem dúvida alguma, um dos ramos do direito que atrai mais a atenção dos atuais juristas das mais diversas áreas. Nele encontramos os temas mais fecundos e controvertidos da atual dogmática jurídica. A sua natureza peculiar oferece aos estudiosos valiosas questões acerca dos direitos existenciais[1] e suas eficácias, dos limites do exercício regular dos direitos patrimoniais, dos conflitos de interesses jurídicos, da eficácia das normas internacionais, etc… Além disso o direito de autor se posiciona no fronte do desafio lançado pelas frenéticas inovações tecnológicas à futura viabilidade da regulação jurídica.

Estas incertezas habitam o próprio regime jurídico dispensado às criações intelectuais: como entender a sua estrutura e sua natureza jurídica? Esta questão tem a maior relevância, pois dependendo da natureza jurídica que se atribua, diferente será a interpretação e a aplicação de suas normas e de seus institutos integradores. Neste trabalho, trataremos desta questão relativamente nova na doutrina, propondo, através da exposição das principais contribuições teóricas, uma solução satisfatória.

Antes de mais nada é necessário advertir para os perigos que tal proposta carrega. A inquisição do melhor tratamento para as criações intelectuais deve basear-se no regime jurídico adotado pelo direito positivo. Somente a partir de uma reflexão das

regras e princípios vigentes poderemos apontar para o caminho certo. “A natureza

deve resultar da lei e manifestar-se no regime estabelecido.”[2] Se insistimos na integração do objeto numa determinada categoria jurídica por respeito religioso à dogmática tradicional ou para afirmar o nosso ponto de vista pré-concebido, cairemos num lamentável equívoco.

A EVOLUÇÃO DO DIREITO DE AUTOR E SUAS PERSPECTIVAS ATUAIS[3] 

Um breve panorâmico histórico é fundamental para esclarecer as perspectivas do tema. A invenção da imprensa no século XVI propiciou uma verdadeira revolução nos círculos de criação e difusão das obras. Os editores e livreiros gozavam de privilégios concedidos pela coroa, este sistema coibia a edição desleal e proporcionava um método eficaz de censura. Os autores permaneciam excluídos do eixo negocial e apenas podiam pretender a sua paga. O conceito de privilégio visava a proteção dos investimentos, não do autor.

A lei da Rainha Ana ( 10.04.1710 ) foi o primeiro documento que estabeleceu uma tutela ao autor, i.e., ao criador da obra. Inspirada no individualismo liberal e na preocupação iluminista da difusão do saber, o autor gozaria então da exclusividade temporária de reprodução da obra. Na França, a revolução aboliu definitivamente todo de privilégio e somente o trabalho passou a legitimar a apropriação, logo o autor se tornou proprietário de sua obra. Era natural que a atribuição aos autores de um direito de exclusividade seguisse o modelo dos direitos reais pois nenhum outro instituto jurídico permitia tantas faculdades de exclusão de qualquer outra pessoa. A idéia de direito real pareceu a mais idônea para estabelecer o estatuto jurídico do autor, embora a temporalidade surgiu conjuntamente como uma peculiaridade. No auge do culto da propriedade, Chapelier diria: “A mais sagrada, a mais pessoal de todas as propriedades é a obra, fruto do pensamento do escritor.”[4]

O regime jurídico adotado apresentaria certos problemas. Até a contribuição alemã do final do século XIX, com a elaboração da propriedade imaterial, o suporte material e criação abstrata permaneceram confundidas na doutrina. De maneira geral, pouco se avançou na explicação das diferenças em relação aos direitos sobre bens corpóreos. Por outro lado, o caráter pessoal das criações intelectuais permaneceu eclipsada pela concepção patrimonial. Em reação, Gierke criou uma teoria kantiana personalista, segunda a qual, a criação do espírito seria uma projeção da personalidade, porém esta teoria, por sua vez, não deu conta satisfatoriamente dos aspectos pecuniários. Frente a estas teorias unitárias, foram esboçadas em diversas matizes teorias dualistas que, reconhecendo na criação uma fonte única e indivisível de direitos, estimava o surgimento de dois feixes de direitos distintos, os morais e os patrimoniais. Estas teorias dualista não se confundem com a teoria mista sui generis que sustenta a unidade da natureza de todos os direitos oriundos da criação.

No Brasil, o regime de privilégios perdurou longamente. A lei 496 de 1896 foi a primeira a tutelar, na esfera civil, os autores, particularmente os lentes universitários, atribuindo um privilégio com 10 anos de duração sobre os cursos que publicassem. A partir do final do século passado, desencadeia-se um movimento internacional de proteção aos autores que repercutirá na ordem interna. A constituição de 1891 traz consigo o direito exclusivo de reprodução dos autores e seus herdeiros. Todas as posteriores constituições, excetuada a Carta de 1937, conterão este dispositivo. O código civil de 1917 regula a matéria, sob o epígrafe “Da propriedade literária, científica e artística”, nos arts. 649 a 673. Com a lei 5988 de 1973 o direito de autor, como ramo do direito, emigra do Código Civil. Esta lei foi o primeiro documento a dispor sobre a matéria de maneira sistemática e autônoma. A Constituição de 1988 recepcionou a matéria nos incisos XXVII e XVIII do art. 5°, trazendo uma garantia institucional a atividade intelectual. Desde logo, o direito de autor não poderá ser suprimido de lei ordinária, nem ser objeto de equivalente vicissitude. Com a abertura da economia brasileira na década de noventa, especialmente do setor da indústria de computação, novo impulso foi dado para a edição de novas leis. Hoje o direito de autor é regido pela lei 9610 de 1998, contamos também com a lei 9609 de 1998 que regula os programas de computador.

A previsão constitucional merece, entretanto, maiores considerações. Tanto o inciso XVII como o XVIII regulam apenas os aspectos patrimoniais do direito de autor. Podemos então inferir que os direitos morais não gozam da garantia constitucional? Será que os aspectos pecuniários se sobrepõem aos de cunho existencial? A resposta só pode ser negativa. Muitos dos direitos morais positivados na lei 6910/98 encontram embasamento nos direitos fundamentais elencados no art. 5 da Lei Maior ( direito à dignidade, à honra, à imagem, etc…). Por outro lado os demais direitos morais da dita lei que tivermos dificuldade em subsumir em algum inciso do art. 5 da CF, nem por isso deixam de ser direitos fundamentais do homem e enquanto tal são recepcionados pelo art. 5 parágrafo 2 da CF. Este parágrafo, verdadeira cláusula aberta da Constituição, permite a equiparação jurídica dos demais direitos fundamentais reconhecidos pelos princípios por ela adotados ou reconhecidos na ordem internacional. Portanto, não podemos negar aos direitos morais do autor a suprema tutela constitucional.

A PROBLEMÁTICA DO DIREITO AUTORAL: INDIVÍDUO VS. COLETIVIDADE 

Direito de autor é o ramo do direito privado que regula as relações jurídicas, advindas da criação e da circulação das obras literárias e estéticas. Esta conceituação tão sintética esconde um mosaico de controvérsias. O conflito de interesses antagônicos é da própria essência do direito autoral.

Por um lado, mantendo a sua tradição liberal-privatista, ele visa a proteção do homem enquanto criador intelectual, defendendo a paternidade e a integridade de sua criação e a fruição dos proventos econômicos dentro da linha dos mecanismos de tutela dos direitos individuais. “Enquanto aos autores de obras intelectuais de predominância literária, artística e científica é enfatizado o aspecto privado desse direito pessoal e exclusivo, como um direito fundamental da pessoa humana garantida pela carta da Nações Unidas, a proteção aos inventos às marcas estará diretamente relacionada ao interesse social e ao desenvolvimento econômico do país.”[5]

Por outro lado, a criação intelectual é uma atividade coletiva que envolve diversos agentes da sociedade. A criação nunca é um labor egoísta, ela é sempre relativa. Todo homem, inserido na sua comunidade , produz a partir do já existente e busca na sociedade uma reação a sua manifestação. Essa originalidade relativa é que é protegida por um certo prazo com o fim de estimular criadores a darem o passo seguinte.[6] Além disso, a tutela individualista das criações pode representar sérios obstáculos numa sociedade de informação como a nossa, preocupada com a fluidez das comunicações e com a liberdade de uso dos bens culturais. A garantia constitucional concedida aos titulares encontra limites nas demais liberdades e garantias consignadas. O TRIPS, no item 2 do art. 8 º da Parte I, prevê a adoção de medidas de prevenção de “abuso dos direitos da propriedade intelectual”, abusos que “limitem de maneira injustificável o comércio ou redundem em detrimento da transferência internacional de tecnologia.” O abuso de direito se torna flagrante quando a própria liberdade de expressão dos demais entes da coletividade está ameaçada. Esta “publicização” do direito autoral é responsável por diversos aspectos peculiares da regulação legal, por exemplo, os direitos patrimoniais só perduram por 70 anos ( art. 41 9610/98 ) após o falecimento do autor. O art. 46, zelando pela liberdade de expressão dos cidadãos em geral, estipula várias situações de exclusão de violação aos direitos autorais, como por exemplo, a publicação pela imprensa ou a citação em livros de passagens de obras. Outra limitação dos direitos individuais em favor do interesse social, especialmente em favor do livre uso das idéias, é o art. 7º parágrafo 3º que estipula que “no domínio das ciências, a proteção recairá sobre a forma literária ou artística, não abrangendo o seu conteúdo científico ou técnico,” Também podemos ler o art. 8º à luz do interesse social, pois este defende o livre uso de esquemas, tratados, convenções, decisões judiciais, etc…

“Destinados a proteger o homem como criador intelectual, esses direitos realizam a síntese entre a defesa dos vínculos de cunho pessoal e patrimonial do autor com sua obra e posterior regulação de sua circulação jurídica, em consonância com os diferentes interesses que envolve, desde os de seu explorador econômico, aos do titular do respectivo suporte físico, e dos da coletividade aos do Estado.”[7] Diante desta finalidade tão heteróclita, podemos nos perguntar como é possível interpretar e aplicar o direito de autor de forma coerente e eficaz? Como conciliar interesses interesses individuais e coletivos antagônicos sem desvirtuar o próprio sentido da tutela jurídica? A resposta pode estar contida na Constituição e na possível construção de um direito de autor constitucional.[8] Como norma suprema do ordenamento jurídico, a constituição é o único núcleo normativo e axiológico capaz de integrar todas estes anseios. Os mandamentos constitucionais irradiam os seus mandamentos em todas as relações jurídicas, inclusive nas relações privadas. Portanto, qualquer atividade comercial dos ramos artístico ou científico deve se reger pelos princípios fundamentais ( art. 1° ao art. 4° da CF/88 ) e pela princípios gerais da atividade econômica ( art. 170 da CF/88), especialmente pelo princípio da dignidade da pessoa humana, entendido atualmente como um princípio vetor dos demais princípios. As relações decorrentes da criação e da difusão de uma obra devem concertar-se, realizando uma harmonização entre os interesses envolvidos.

O autor tem o direito de modificar a sua obra antes e depois de utilizada ( art. 24, V da lei 9610/98) com base no respeito à evolução de sua personalidade. Como exemplo, cabe lembrar dos “arrependimentos” do pintor espanhol Velásquez que modificou algumas das suas obras mais célebres. Uma dificuldade surge no reconhecimento deste direito quando os direitos de exploração da obra foram cedidos a um terceiro. Não obstante a omissão da lei, o conflito de interesses deve ser resolvido em favor do direito moral do autor por seu caráter constitucional eminente, indenizando-se o cessionário pelo prejuízo sofrido. O autor também tem o direito de retirar de circulação a obra quando isto implicar afronta à sua reputação ou imagem ( art. 24, VI ). Igualmente neste caso o direito moral colide com os direitos patrimoniais cedidos a terceiro. Ora, nem a evocação do princípio pacta sunt servanda resiste à autoridade constitucional de um direito fundamental, portanto é assegurado ao autor o exercício do seu direito, devendo o terceiro ser indenizado. O último caso paradigmático muito interessante é o conflito entre o direito do autor de acesso a exemplar único ou raro ( art. 24, VII ) e o domínio real de terceiro sobre o exemplar. Como veremos adiante o direito de autor sobre a criação é independente e compatível com o direito de propriedade sobre o exemplar, mas algumas restrições podem se impor ao último. Neste caso, a solução já está expressa na próprio dispositivo legal que prevê que o acesso deverá causar o menor inconveniente possível ao seu dono que deverá ser indenizado pelos possíveis danos. Ao adotarmos o prisma constitucional, a primazia dos direitos morais sobre os direitos patrimoniais se torna irrefutável.

A CRIAÇÃO INTELECTUAL COMO BEM IMATERIAL 

O direito do autor pressupõe uma obra; não há direito do autor sem obra. Na evolução do direito de autor, a elaboração da categoria do bem imaterial representou uma mudança significativa na doutrina, com ela foi possível a distinção entre o suporte material da obra e a criação intelectual em si. A conceituação do bem imaterial e a natureza jurídica das criações mantém um relação muita estreita, somente após estudarmos cuidadosamente o primeiro poderemos abordar com segurança o segundo.

Para os romanos a noção de materialidade ou imaterialidade dos bens estava relacionada ao fato de serem ou não eles tangíveis, ou, por outras palavras, poderem eles serem tocados ou não. Porém este critério é insatisfatório pois existem coisas corpóreas como o ar que não são tangíveis. Melhor, portanto a definição de Messineo, para quem, são bens imateriais “as coisas não perceptíveis, tais como os produtos da atividade… intelectual e criativa titulados pelas regras sobre direitos autorais e direitos de patente, com eles não se devendo confundir as coisas nas quais a criação se materializa.”[9] Os bens incorpóreos são aqueles que só têm existência apenas em face da atividade intelectual e inventiva do homem. Operando esta diferença entre o corpus mechanicum e o corpus misticum, o direito sobre bens imateriais só recairia sobre o corpus misticum.

O art. 7º da lei 9610/98 ensina-nos que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”. De modo análogo procede a convenção de Berna ao determinar que obras literárias e artísticas são todas as produções do domínio literário, científico ou artístico, qualquer que seja o modo ou a forma de expressão. ( art. 2º, I ). Não obstante a autonomia que a criação possa adquirir diante de sua materialidade, o suporte físico é imprescindível para a incidência dos direitos morais do autor, para o usufruto dos direitos patrimoniais e para a coibição dos ilícitos civis e penais. A criação do espírito não pode permanecer no foro intimo, deve se exteriorizar necessariamente, seja por qualquer forma de manifestação. O direito de autor só poderá regular a relação do homem diante de sua obra, se esta se materializar de alguma forma.[10] Portanto a criação literária e artística está intimamente ligada à sua forma objetiva, mas não se confunde com ela. Os direitos de autor não impedem que o proprietário do exemplar gozem plenamente de suas faculdades reais. O autor pode reclamar a paternidade de uma de suas obras, pode exigir uma participação pecuniária na edição, por sua vez, o proprietário do exemplar pode emprestar, vender, alugar e até, se for esta a sua vontade, destruí-lo (art. 524 CCb)).

Outra questão interessante acerca da natureza da criação intelectual é o alcance da proteção autoral: protegeria ele tão somente a forma da obra ou também o seu conteúdo. Tradicionalmente se entende que só a forma é vinculada enquanto o conteúdo seria livre, pois se entende que não há propriedade ou exclusividade de idéias, posto que elas integrariam o patrimônio comum da humanidade. Consoante esta orientação já vimos acima que a lei exclui da tutela jurídica o conteúdo das obras científicas (art. 7º para. 3º) como também as idéias, métodos, decisões judiciais, leis, aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras, etc…

Porém esta restrição da regulação jurídica é posta em causa pela figura do plágio. O plágio seria um copia insidiosa, “porque se apodera da essência criadora da obra sob veste ou forma diferente.”[11] Vários autores podem versar sobre o mesmo assunto sem haver plágio, logo não é a coincidência do tema que caracteriza o ilícito. Quando pensamos em obras cinematográficas ou musicais, a questão se torna ainda mais difícil pois não seria possível fazer a distinção entre forma e conteúdo como também outros elementos entram em jogo na avaliação do plágio. A questão só pode ser resolvida quando entendemos que o direito autoral visa proteger o espaço de criação individual, se o autor acrescentou algo autenticamente original, em nada poderá ser criticado. Toda obra goza de presunção de individualidade, apenas quando examinada pelo Judiciário poder-se-á por em questão a sua idoneidade. Como se pode imaginar este é um trabalho complexo e sutil que exige do magistrada não apenas conhecimento mas também sensibilidade. A criatividade, entendida como a individualidade da obra,[12] é requisito essencial para a tutela jurídica da criação, tanto no seu aspecto formal como substancial. Portanto, a criação intelectual é bem imaterial que se projeta em algum corpo e que manifesta uma individualidade. Não obstante as íntimas relações com seu criador e seu suporte material, ela é essencialmente autônoma.

A NATUREZA JURÍDICA DO DIREITO DE AUTOR : UM DIREITO SUI GENERIS

Desde o século passado, teorias patrimonialistas e personalistas vem tentando configurar o direito de autor, porém, em geral, todas as teorias apresentam fraquezas. Como foi dito acima, as teorias personalistas têm grande dificuldade em explicar os aspectos patrimoniais enquanto as teorias patrimonialistas, por sua vez, não conseguem explicar adequadamente os aspectos pessoais do direito de autor. Não seria oportuno analisa-las todas em detalhe, por isso, neste trabalho só examinarei as teorias que reconhecendo a impossibilidade de um tratamento homogêneo, partem do pressuposto dualistico.

Qual seria, enfim, a natureza dos direitos conferidos ao autor? Como informar a situação jurídica subjetiva de que ele goza? Segundo as teorias dualistas, a criação da obra seria um fonte geradora de direitos e deveres imputados ao autor. Desta fonte única e indivisível surgem dois feixes de direito distintos. Por um lado teríamos os direitos patrimoniais e, de outro lado, os direitos morais. Afirmado isto podemos inferir duas importantes conclusões. Primeiro, devo alertar para o fato que são os direitos autorais que possuem natureza dualista e não o direito de autor em si. Como exaltou Piola Caselli na Convenção de Roma de 1928,[13] exatamente porque se bipartem em dois feixes de direitos que, por sua natureza e finalidade, estão intimamente ligados, o direito de autor, como ramo do direito privado, é incindível, devendo ser configurado globalmente como um todo autônomo que regula sistematicamete as relações decorrentes da criação e circulação de criações intelectuais. Entretanto, os direitos oriundos desta situação subjetiva nuclear podem ser classificados em duas categorias distintas: os morais ou pessoais e os patrimoniais, conforme a próprio estrutura da lei 9610/98 confirma.[14]

Segundo, a teoria mista cai por terra, pois os direitos do autor pertecem a dois grupos estanques, nenhum deles é meio patrimonial e meio moral ou patrimonial e moral ao mesmo tempo.

Tradicionalmente tem se entendido que os direitos patrimoniais são direitos de natureza real, nos moldes do direito de propriedade, e os direitos pessoais são direitos da personalidade. O direito de autor, no seu aspecto pecuniário, reconheceria uma propriedade imaterial que, consoante o art. 524 do Código Civil,[15] autoriza o titular a usar, gozar e dispor do seu bem por um certo período. Ao lado destes direitos de caráter patrimonial, o sujeito possui direitos extra-patrimoniais denominados existenciais. Os direitos existenciais, reconhecidos como direitos fundamentais, protege bens indispensáveis para a proteção e realização da dignidade do ser humano. A obra do espírito humano é expressão de sua personalidade, nela ele projeta parte de sua existência e se reconhece, logo proteger esta relação íntima entre a obra e seu criador é imprescindível para a plena proteção da integridade moral do homem. Como todo direito da personalidade, os direitos pessoais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis ( art. 27 ). Conforme a visão perfilhada, o direito de autor é um situação jurídica que gera de um lado um direito de propriedade imaterial e, de outro lado, direitos morais da personalidade. Todavia, nada é mais controvertido do que esta visão.

O DIREITO DA PROPRIEDADE IMATERIAL E SUAS CRÍTICAS 

O instituto da propriedade permitiu explicar vários aspectos do direito de autor como o seu efeito erga omnes e as suas faculdades exclusivas. As primeiras críticas apontaram para a temporalidade das faculdades econômicas do titular e para as situações excludentes de violação. Mas os seus defensores incorporaram estas críticas, entendendo estas peculiaridades como regras em prol da função social da propriedade.

Esta interpretação me parece legítima, porém uma análise mais atenta descarta qualquer tentativa de equiparação entre o direito de autor e a propriedade real.

Na esfera civil, institutos como a posse, as ações possessórias, a transferência de domínio e usucapião não podem ser estendidos ao corpo do direito de autor.[16] No plano penal, a sanção prevista para coibir os atos atentatórios contra os direitos de autor (contrafação) em nada se assemelha com aquela prevista contra qualquer atentado contra a propriedade privada.[17] Enfim, nenhum dos princípios que regem a propriedade corpórea se aplica à propriedade espiritual, não apenas no que toca o seu objeto mas como também a forma de domínio.

Não nos resta outra alternativa senão conceber a natureza do direito patrimonial do autor como um direito sui generis. Efetivamente a classificação dos direitos subjetivos em reais, pessoais e obrigacionais está longe de ser exaustiva. Um teoria sui generis interessante é apresentada por J.O. Ascensão.[18] Segundo ele, o titular detém um direito de exclusivo temporário, uma concessão, reconhecida em face da coletividade, de exploração econômica da obra. Este direito seria uma compensação ao autor pela sua contribuição ao patrimônio cultural coletivo. De qualquer forma, o direito patrimonial de autor não pode ser subsumido a nenhuma das categorias dogmáticas tradicionais e somos obrigados a nos voltar para novas propostas.

OS DIREITOS DA PERSONALIDADE E SUAS CRÍTICAS 

Os aspectos pessoais, não patrimoniais, que tinha sidos ofuscados pelas primeiras teorias patrimonialistas, adquiriram grande impulso com a elaboração da teoria dos direitos da personalidade. Com a recepção de tal teoria pelos ordenamentos jurídicos, os autores conquistaram uma garantia ao seu reconhecimento intelectual e puderam se defender dos contratos de cessão abusivos. Porém a sua concreção como direito personalíssimo sempre suscitou grandes dificuldades. Alguns doutrinadores entendem que os direitos da personalidade não admitem objeto fora do corpo humano, ora, nas obras do espírito humano, sempre há um objeto fora do pessoa. Indo mais longe, eles dizem que a proteção autoral não tutela um bem da personalidade, mas uma situação jurídica subjetiva especial em relação a uma obra. Eles apontam para a vulgarização da criação intelectual que, nas sociedades de massa, deixara de espelhar a personalidade de seu criador. De fato, a obra e criador não se confundem. Quando criticamos o livro de um autor, não queremos atingi-lo pessoalmente e bem sabemos como a vida e a obra de uma pessoa podem ser incompatíveis. Por outro lado, não podemos negar qualquer relação entre a personalidade e a criação. Ou será que o autor não sente a sua identidade e sua honra espezinhadas quando assiste um obra estranha circulando com o seu nome? Ou quando seu filme está sendo exibido nos cinemas com a trilha sonora adulterada? A crítica se baseia numa concepção equivocada dos direitos da personalidade, pois estes não abrangem apenas dentro de sua esfera de tutela o corpo do titular mas incidem também sobre qualquer objeto exterior relevante para a proteção, expressão e realização da personalidade humana. Por exemplo, alguém pode alegar uma violação a sua intimidade ao saber que um estranho examinou, sem o seu consentimento, a sua agenda.

Todavia, o segundo argumento me parece irrefutável. Os direitos da personalidade se extinguem com a morte do sujeito, porém o para. 1° do art. 24 estipula a transmissão dos direitos morais de paternidade e de integridade da obra para os herdeiros da autor. Certamente, esta legitimidade meta-individual não se compadece com a concepção até hoje adotada acerca dos direitos personalíssimos. Mas a teoria dos direitos existenciais, diferente do instituto da propriedade real, apenas foi elaborado em seus contornos e podemos esperar credulamente que uma futura contribuição dos juristas consiga contornar esta crítica. De qualquer modo os direitos pessoais do autor merecem tratamento destacado dos direitos da personalidade, mas nunca podemos perder de vista as suas mútuas implicações.

CONCLUSÃO 

Ao analisar um fenômeno novo procuramos naturalmente assimila-lo a categorias pré-concebidas. A apreensão de um novo instituto jurídico sempre se baseia na operação de nossos conceitos, métodos e instrumentos adquiridos. Mas quando nos deparamos com algo que foge completamente da estrutura dogmática existente, devemos proceder por uma análise independente e objetiva. Podemos, ao fim de tal tarefa, descobrir que a nossa dogmática ainda nos era útil, mas, no caso contrário, ainda seremos capazes de absorver satisfatoriamente o fenômeno.

O estudo da natureza jurídica do direito de autor percorre este procedimento. Fomos incapazes de incorpora-lo à dogmática tradicional, renunciamos a tal empreitada e contentamo-nos em julga-lo como sui generis. Ora, diante da impossibilidade de inseri-lo dentro de uma categoria jurídica existente, a determinação de sua natureza jurídica perde sentido. Dizer que o direito de autor é sui generis implica na negação da natureza jurídica como um instrumento que o jurista dispõe na estruturação da dogmática.

Entretanto podemos conceitua-lo como uma situação jurídica subjetiva, originada na criação de uma obra intelectual original ( individual ), da qual decorre dois feixes de direitos sui generis, de um lado, os direitos patrimoniais e, de outro lado, os direitos pessoais. Esses direitos são uma síntese compreensiva dos interesses individuais e coletivos antagônicos implicados nas relações inerentes à criação e à circulação das obras intelectuais.

Mas esta conceituação reflete uma realidade parcial que se transforma rapidamente e permanece ameaçada pelos inovações tecnológicas que reformulam as relações sociais. A Internet, por exemplo, disponibiliza ao público em geral meios poderosos de reprodução e de difusão de obras que precipitam o direito vigente à inviabilidade. Quando o direito se separa demasiadamente da realidade a qual ele serve, ele deve se transformar, se quiser manter-se vivo.

BIBLIOGRAFIA
Carlos Alberto Bittar, Direito de autor, 1992, 1a edição, Ed. Forense Universitária

Diego Espin Canovas, “La protección de la propiedad intelectual en la actualidad: pespectivas de una nueva ley española”, Revista de Direito Civil, n° 71, 1998

Eliane Y. Abrão, “Direito autoral e propriedade industrial como espécies do gênero propriedade intelectual. Suas relações com os demais direitos afins”, Revista dos Tribunais, ano 86, v. 739, maio 1997, pp. 86-95

João Paulo Capella Nascimento, “A natureza jurídica do direito sobre os bens imateriais”, Revista da ABPI, n° 28, maio-junho de 1997

José de Oliveira Ascensão, Direito autoral, 1997, 2a edição refundida e ampliada, Ed. Renovar

Maria Celina Bodin de Moraes, “A caminho de um direito civil constitucional”, Revista Direito, Estado e Sociedade, n° 1, julho-dezembro de 1991, 2a edição, pp. 59-75

Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, 1997, 9a edição, Ed. Forense


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[1] Os direitos da personalidade recebem tanto a designação de direitos morais (adotada pelo lei vigente), pessoais ou existenciais.
[2] José de Oliveira Ascensão, Direito Autoral, p.598
[3] Conf. Diego Espin Canovas, “La protección de la propiedad intelectual en la actualidad: perspectivas de una nueva ley española”, Revista dos Tribunais, n°.71, pp 53-68
[4] Apud, Canovas, Ob. Cit., p.56
[5] Eliane Y. Abrão, “Direito autoral e propriredade industrial como espécies do gênero propriedade intelectual. Suas relações com os demais direitos intelectuais”, Revista dos Tribunais, v. 739, p.90
[6] Abrão, Ob. Cit., pp. 93-95
[7] Carlos Alberto Bittar, Direito de Autor, p. 4
[8] No sentido da constitucionalização do Direito Civil, ver Maria Celina Bodin de Moraes, “A caminho de um direito civil constitucional”, revista Direito, Estado e Sociedade, n°. 1
[9] Apud Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, p. 186
[10] Ascensão, Ob. Cit., p.30
[11] Ascensão, Ob. Cit., p.34
[12] Ascensão, Ob. Cit, pp. 51-53
[13] A revisão de Roma de 1928 foi um marco fundamental na construção do regime jurídico internacional da proteção autoral. A partir dela, o tratado da Convenção passou a reconhecer os direitos morais no âmbito internacional. Durante a sessão, Piola Caselli, eminente e apaixanado jurista italiano, recordou o avanço teórico na direção da concreção dos direitos morais. Segundo sua exposição, a necessidade de se reconhecer estes direitos pessoais era tanto mais necessário conquanto os novos meios de difusão e reprodução facilitavam a violação da integridade da obra e os atentados aos interesses intimos do autor. A proteção aos direitos patrimoniais, por sua vez, diminuiria paulatinamente por razões políticas, culturais e sociais.

[14] No título III “Dos direitos do autor”, a lei traz o capítulo II “Dos direitos morais do autor” e o capítulo III “Dos direitos patrimoniais do autor e de sua duração”.
[15] Muitos juristas da corrente monista patrimonial interpretam o uso da palavra “bens” no citado artigo de maneira ampla, abrangendo os bens materiais e os bens imateriais.
[16] João Paulo Capella Nascimento, “A natureza jurídica do direito sobre os bens imateriais”, Revista da ABPI, n°. 28, pp. 31 e 32
[17] Nascimento, Ob. Cit., p.32
[18] Ascensão, Ob. Cit., pp. 609-617
 

(http://www.puc-rio.br/direito/pet_jur/prdiraut.html)
Akasha De Lioncourt
Enviado por Akasha De Lioncourt em 29/08/2006
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