Por Teté Ribeiro (Colaboração para a Folha, em Nova York)
Estréia hoje no Brasil "O Gângster", 17º longa-metragem da carreira do inglês Ridley Scott, trama sobre a ascensão ao poder em Nova York de Frank Lucas, maior traficante de heroína da cidade nos anos 70, protagonizado por Denzel Washington. À Folha, o diretor de "Blade Runner", "Alien" e "Thelma e Louise" falou sobre sua facilidade para trabalhar com Russell Crowe (com quem já fez outros dois filmes), sobre a influência de "Operação França", de William Friedkin, no novo longa, e sobre a dificuldade para realizar as mais de 300 cenas previstas no roteiro de Steven Zaillian. A seguir, a íntegra da entrevista, realizada em duas partes, a primeira em Los Angeles e a segunda em Nova York, um mês depois.
Folha - Por que essa obsessão com o Russell Crowe?
Ridley Scott - Não tenho a menor idéia. Talvez tenha alguma coisa a ver com a cultura, eu sou inglês, e o Russell é parte australiano, parte neozelandês. E nós dois somos muito diretos, falamos o que pensamos. Desde “Gladiador” acabamos ficando amigos, aí fica tudo mais fácil. No meu trabalho você perde muito tempo tentando conhecer o ator, para pode tirar dele o melhor personagem possível. Com o Russell, hoje em dia, essa parte está resolvida. E ele é obviamente um dos melhores atores do cinema, então por que não?
Folha - O que acontece quando vocês não concordam com alguma coisa? Você como diretor consegue impor sua decisão a uma pessoa tão cheia de opiniões como ele?
Scott - Nem sempre. Mas as brigas são sempre boas (risos). Ele é um ótimo ouvinte. Pode não concordar com você, mas nunca deixa de ouvir e tentar entender o seu ponto de vista.
Folha - Sentiu diferença em trabalhar com dois protagonistas, sendo um seu grande conhecido e outro em sua primeira colaboração com você?
Scott - Pessoalmente sim, mas profissionalmente não. Os dois são atores que fazem lição de casa, que estudam o personagem, decoram as falas e pensam em como vão andar, falar, agir. Aí é fácil dirigir. Bons atores conhecem bem seus personagens, amadores acreditam que o talento vai trazer uma idéia brilhante na última hora. E idéias brilhantes só costumam aparecer em quem está completamente à vontade com o material que têm.
Folha - E você, o quanto se prepara?
Scott - Eu também faço minha lição de casa direitinho. E tenho mais de 40 anos como diretor, portanto, posso confiar um pouco mais nos meus instintos hoje em dia. Eu sei que vou escolher os melhores lugares para botar as câmeras no set mesmo se nunca tiver visto o set. E acho que posso dizer sem parecer presunçoso que sei iluminar uma cena para ter o clima que eu quero que tenha. Mas, sem intimidade com o material, sem ler o texto mil vezes, sem estudar cada cena mil vezes, não há instinto que salve um diretor.
Folha - Você acha que o fato de ser de outro lugar facilitou de alguma forma o seu jeito de entender e mostrar o Harlem?
Scott - Acho que sim. Quando você mora em um lugar, raramento o vê. Você se acostuma tanto a ele que não enxerga os aspectos mais interessantes, fica menos sensível aos detalhes do lugar. Eu moro nos Estados Unidos grande parte do tempo há muitos anos, meu escritório é em Los Angeles, mas tento manter meu olhar tão fresco quanto era quando cheguei neste país pela primeira vez. E ainda sou muito um inglês, isso não sai tão fácil assim de uma pessoa.
Folha - E que Nova York você prefere, a de hoje, que é segura, cara, ou a dos anos 60, talvez mais criativa, mas mais perigosa?
Scott - Eu gosto mais da de hoje em dia. Um lugar não seguro é muito interessante no cinema e nas fotos, mas para viver e trabalhar é chato. E até o Giuliani era um inferno. Hoje em dia acho que é a cidade mais importante do mundo e a mais segura entre as maiores.
Folha - Mas empobreceu culturalmente, não? Os artistas iniciantes que moravam em Nova York nos anos 60, 70, não conseguiriam viver na cidade nos dias de hoje.
Scott - Pode ser, mas a TV tem mais culpa nisso do que o Giuliani (risos). E o avanço da tecnologia deu uma banalizada no entretenimento, eu vejo as pessoas com seus iPods minúsculos vendo filmes que foram feitos para ser vistos no cinema e acho o fim do mundo. Não é possível que as pessoas não tenham nada melhor para fazer do que assistir um filme numa tela de 2 cm por 4 cm. Me falaram que é muito útil e tal, e eu sei que devo parecer um velho gagá falando isso, mas nada me convence que um aparelho tão pequeno possa servir como tela de cinema.
Folha - Foi muito difícil fazer a transição da publicidade para o cinema? E é verdade que todo publicitário sonha em ser cineasta?
Scott - A publicidade foi minha escola de cinema. Fiz mais de 2.000 comerciais antes de começar a fazer cinema, e no mundo inteiro. Então foi muito fácil, enfrentei muitos problemas no set que depois apareceram em outras formas nos filmes que eu dirigi. E acho que sim, todo publicitário quer ser cineasta, pelo menos no começo. Tem gente que acaba se apaixonando por aquela linguagem mais rápida e não se sente frustrado em dedicar sua vida a vender o produto dos outros. Mas eu não seria feliz fazendo só isso.
Folha - Você produz muito mais do que dirige hoje em dia. O que te faz escolher uma história para dirigir?
Scott - O que eu leio. Tenho que me apaixonar perdidamente pelo roteiro, senão não tenho energia para todo o trabalho que vem pela frente. Para produzir vale um tesão passageiro, porque sei que não vou ser obrigado a passar um ano só pensando naquele assunto. Mas, quando me apaixono, me apaixono mesmo, profundamente, por isso costumo produzir todos os filmes que eu dirijo.
Folha - Você se dá melhor com dramas que com comédias…
Scott - E você quer saber por que meu último filme (“Um Bom Ano”, também com Russell Crowe) foi um fracasso, não é? Não sei. O pior é que vivo ouvindo de outros atores e de jornalistas que me entrevistam como eles gostaram do filme. Isso me deixa louco. Por que não avisaram os amigos, por que não levaram uma caravana aos cinemas? Por que não escreveram mais sobre ele?
Folha - Uma das informações mais chocantes de “O Gangster” é o uso dos aviões do Exército para transporte de heroína. Mas isso não é muito bem explicado no filme. Como a CIA não ficou sabendo? E quantos soldados e capitães do Exército estavam envolvidos?
Scott - Isso seria outro filme! A história é complicada, não teria como contar sem banalizar, e o filme já conta duas histórias, não teria como entrar em uma terceira. Mas é óbvio que a CIA também estava envolvida, e que vários soldados, pilotos, capitães estavam envolvidos. Era uma outra quadrilha, uma outra máfia.
Folha - E algum deles foi processado quando Frank finalmente foi preso e decidiu entregar os policiais corruptos?
Scott - Não, ninguém do Exército foi julgado por isso. O processo do Frank foi centrado na polícia de Nova York e nos traficantes que operavam na cidade. E pelo mesmo motivo que eu não entrei nessa história no filme. Se o processo envolvesse a CIA e o Exército, não ia durar os dois meses que durou, mas sim décadas. E o que o Ritchie Roberts queria era limpar a polícia e prender mais traficantes.
Folha - Como está o Frank Lucas hoje em dia?
Scott - Não muito bem, ele precisa de uma cadeira de rodas para se movimentar, tem uma forma muito severa de artrite. Ele está feliz e entusiasmado com o sucesso do filme, mas não está em sua melhor forma. Ele ama o filme e ama falar sobre os seus dias de glória, ele tem muita saudade do dinheiro e do poder.
Folha - Ele tem algum dinheiro?
Scott - Aparentemente não. Ele vive quase como um mendigo hoje em dia. Mas a família continua em volta dele, e ele foi ao set quase todos os dias, então pelo menos alguma pensão ele deve ter. Eu não perguntei, não entrei em detalhes. A gente queria saber muito sobre o passado dele, mas quase nada sobre o presente.
Folha - E ele se arrepende de alguma coisa?
Scott - Não. De nada. Eu fiz essa mesma pergunta, e ele me olhou com cara de assustado e perguntou: "O que eu teria para me arrepender?".
Folha - Tem uma fala no filme que poderia explicar pelo menos uma coisa que o Frank Lucas teria para se arrepender: de não ter desistido do negócio antes de ser pego. É o produtor de heroína asiático que diz “sair no auge não é a mesma coisa que desistir”. Essa fala não é do Frank, então?
Scott - Não, essa frase é do Steven Zaillian, o roteirista do filme, que é brilhante. Ninguém teria a ousadia de fazer essa sugestão para o Frank daquela época. Talvez a mãe dele, que era muito próxima, mas ela não queria saber de onde vinha todo o dinheiro do filho. A mulher devia saber, mas também não discutia o trabalho do marido. Esse roteiro é das melhores coisas que eu li nos últimos anos.
Folha - O filme tem quase três horas, dois personagens principais e dezenas de coadjuvantes mas não é complicado de entender, você não sai se perguntando quem é quem, o que um personagem quis dizer com isso ou aquilo. É tudo mérito do roteiro?
Scott - Não, peraí, eu também tenho mérito nisso. Foi um pesadelo dirigir esse filme, tem mais de 300 cenas, em mais de 100 locações, uma edição toda picotada. Por isso mesmo eu trabalhei muito na pré e na pós-produção, para não parecer uma colagem de videoclipes, o que acho insuportável, mas também para o espectador não perder interesse em uma história enquanto estivesse assistindo a partes da outra. E para se relacionar de alguma forma com os personagens secundários também, para não ficar a história de dois homens fortes e um bando de gente sem características em volta, o que acontece muito em filmes assim.
Folha - Que avaliação você faz deste filme?
Scott - Estou muito feliz com o resultado, acho que é um bom filme. Mas não é “Shrek”, ou um desses filmes de família, feitos para agradar todo mundo. “O Gângster” é um filme de gente grande, com problemas sérios, soluções difíceis. Acho que vai dar tudo certo. E esta é uma resposta muito britânica, muito subestimada (risos).
Folha - O Francis Ford Coppola, que dirigiu o filme de gângster mais famoso do mundo, foi muito questionado na época por glorificar a imagem do mafioso. Você espera uma reação parecida com essa ao seu gângster?
Scott - Acho que o que foi glorificado no caso do Don Corleone foi seu respeito às suas tradições. Parecia um filme sobre uma família real, não uma família de criminosos. O jeito como o Coppola decidiu filmar “O Poderoso Chefão” é muito grandioso, quase como uma ópera. Não estou criticando, só apontando um estilo, que não é o meu estilo. Para o meu filme, minhas inspirações vieram mais de “Operação França”. No meu filme a violência do personagem principal aparece muito mais, está sempre claro que ele pode explodir a qualquer momento, então imagino que isso tire um pouco dessa aura muito pomposa dos criminosos do filme do Coppola.
Folha - E essa é a versão final do filme? Ou em 25 anos nós vamos assistir à versão do diretor de “O Gângster”?
Scott - (Risos) O filme é esse, essa é a minha versão. Isso não acontece mais comigo. Em “Blade Runner”, que agora está sendo lançado com a versão que eu queria desde o começo, eu não era produtor e estava começando a carreira de diretor, não tive como não ceder às pressões do estúdio. Por isso, neste ano, que é o aniversário de 25 anos do filme, decidi comemorar com o lançamento da minha versão definitiva.
Folha - Mas e a versão definitiva que foi lançada 5 anos atrás?
Scott - Aquela segunda edição foi feita meio às pressas. Todo mundo sabia que o final do filme tinha sido alterado, mas ninguém tinha visto a versão original. Quando o estúdio resolveu lançar a versão do diretor, eu estava ocupado com outros projetos e não tive tempo de procurar todos os takes que queria incluir, então só alteramos o final. Mas eu não fiquei satisfeito, aquele é um filme muito importante para mim, provavelmente o que mais me marcou, por tudo que deu certo e por tudo que deu errado, então quis refazer, desta vez com tempo e com dedicação.
Folha - Então esta é a versão definitiva de “Blade Runner”?
Scott - É. Esse é o filme que eu queria ter lançado em 1982.
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